O Fígado indiscreto
Monteiro Lobato
Inácio era o rei dos
acanhados. Pelas coisas mínimas, avermelhava, saía fora de si e permanecia
largo tempo idiotizado.
O progresso do seu namoro
foi, como era natural, menos obra sua que da menina, e da família de ambos,
tacitamente concertadas numa conspiração contra o celibato do futuro bacharel.
Uma das manobras constou do convite que ele recebeu para jantar nos Lemos, em
certo dia de aniversário familiar comemorado a peru.
Inácio barbeou-se, laçou a
mais famosa gravata, floriu de orquídeas a botoeira, friccionou os cabelos com
loção de violetas e lá foi, de roupa nova, lindo como se saíra da forma naquela
hora. Levou consigo, entretanto, para seu mal, o acanhamento - e daí proveio a
catástrofe...
Havia mais moças na sala,
afora a eleita, e caras estranhas, vagamente suas conhecidas, que o olhavam com
a benévola curiosidade a que faz jus a um possível futuro parente.
Inácio,
de natural mal firme nas estribeiras, sentiu-se já de começo, um tanto
desmontado com o papel de galã à força, que lhe atribuíam. Uma das moças,
criaturinha de requintada malicia, muito "saída" e
"semostradeira", interpelou-o sobre coisas do coração, ideias
relativas ao casamento e também sobre a "noivinha" - tudo com meias
palavras intencionais, sublinhadas de piscadelas para a direita e a esquerda.
Inácio avermelhou e
tartamudeou palavras desconchavadas, enquanto o diabrete maliciosamente insistia:
Quando os doces, Sr. Inácio?
Respostas mascadas,
gaguejadas ineptas, foram o que saiu de dentro do moço, incapaz de réplicas
jeitosas sempre que ouvia risos femininos em redor de si. Salvou-o a ida para a
mesa.
Lá, enquanto engoliam a
sopa, teve tempo de voltar a si e arrefecer as orelhas. Mas não demorou muito
no equilíbrio. A culpa aqui foi da dona da casa. Serviu-lhe dona Luiza, um bife
de fígado sem consulta prévia.
Esquisitice dos Lemos:
comiam-se fígados naquela casa até nos dias mais solenes.
Esquisitice do Inácio:
nasceu com a estranha idiossincrasia de não poder sequer ouvir falar em fígado
- seu estômago, seu esôfago e talvez seu próprio fígado tinham pela víscera
biliar uma figadal aversão. E não insistisse ele em contrariá-los: amotinavam-se
repelindo indecorosamente o pedaço ingerido.
Nesse dia, mal dona Luiza
o serviu, Inácio avermelhou de novo, e novamente saiu fora de si. Viu-se só,
desamparado e inerme ante um problema de inadiável solução. Sentiu lá dentro o
motim das vísceras; sentiu o estômago, encrespado de cólera, exigir, com
império, respeito às suas antipatias. Inácio parlamentou com o órgão digestivo.
Mostrou-lhe que mal momento era aquele para uma guerra intestina. Tentou
acalma-lo a goles de Clarete, jurando eterna abstenção para o futuro, Pobre
Inácio! A porejar suor nas asas do nariz, chamou a postos o heroísmo, evocou
todos os martírios sofridos pelos cristãos na era romana e os padecidos na era
cristã pelos heréticos; contou um, dois e três e glup! Engoliu meio fígado sem
mastigar. Um gole precipitado de vinho rebateu o empache. E Inácio ficou a
esperar, de olhos arregalados, a revolução intestina.
Em redor a alegria
reinava. Riam-se, palestravam ruidosamente, longe de suspeitar o suplicio
daquele mártir, posto a tormentos de uma nova espécie.
- Você já reparou, Miloca,
na "ganja" da sinharinha? Disse uma das moças. - Está como quem viu o
passarinho verde. E olhou de soslaio para Inácio.
O calouro, entretanto, não
deu fé da tagarelice; surdo às vozes do mundo, todo se concentrava nas vozes
viscerais. Além disso, a tortura não estava concluída; tinha ainda diante de si
a segunda parte do fígado engulhento. Era mister ataca-la e concluir de vez a
ingestão penosa. Inácio engatilhou-se de novo e - um, dois, três: glup! Lá
rodou, esôfago abaixo, o resto da miserável glândula.
Maravilha! Por
inexplicável milagre de polidez, o estômago não reagiu. Estava salvo Inácio. E
como estava salvo, voltou lentamente a si, muito pálido, com o ar dos
ressuscitados. Chegou a rir-se. Riu-se alvarmente, de gozo, como riria Hércules
após o mais duro dos seus trabalhos. Seus ouvidos ouviam de novo rumores do
mundo, seu cérebro voltava a funcionar normalmente, e seus olhos volveram outra
vez as visões habituais.
Estava nessa doce
beatitude, quando:
- Não sabia que o senhor
gostava tanto de fígado, disse-lhe dona Luiz, vendo-lhe o prato vazio - repita
a dose.
Fora de si outra vez, o
pobre moço exclamou, tomado de pânico:
- Não! Não! Muito
obrigado!...
- Ora, deixe-se de luxo!
Tamanho homem com cerimônias em casa de amigos. Coma, coma, que não é vergonha
gostar de fígado. Aqui está o Lemos, que se péla por uma isca.
- Iscas são comigo,
confirmou o velho. Lá isso não nego, com elas ou sem elas, nunca as enjeitei.
Tens bom gosto rapaz. Serve-lhe, serve-lhe mais, Luiza.
E não houve salvação! Veio
para o prato de Inácio um novo naco - este formidável, dose dupla.
Não se descreve o drama
criado no seu organismo, e disfarçadamente ele aguardou o milagre.
E o milagre veio! Um
criado estouvadão, que entrava com o peru, tropeçou no tapete e soltou a ave no
colo de uma dama. Gritos, reboliço, tumulto. Num lampejo de gênio, Inácio
aproveitou-se do incidente para agarrar o fígado e mete-lo no bolso.
Salvo! Nem dona Luiza nem
os vizinhos perceberam o truque - e o jantar chegou à sobremesa sem maior
novidade.
Antes da dançata, lembrou
alguém recitativo e a espevitadíssima Miloca veio ter com Inácio.
- A festa é sua, doutor.
Nós queremos ouvi-lo. Dizem que recita admiravelmente. Vamos, um sonetinho de
Bilac.Não sabe? Olhe o luxinho! Vamos, vamos! Quer decerto que a Sinharinha
insista?... Ora, até que enfim! A douda de Albano? Conheço sim, é linda, embora
um pouco fora de moda. Toque a Dalila, Sinharinha, bem piano... assim...
Inácio, vexadíssimo,
vermelhíssimo, já em suores, foi para o pé do piano, onde a futura consorte
preludiava a Dalila em surdina. E declamou a douda de Albano.
Pelo meio dessa hecatombe
em verso, ali pela quarta ou quinta estrofe, uma baga de suor escorrida da
testa parou-lhe na sobrancelha, comichando qual importuna mosca. Inácio
lembra-se do lenço e saca-o fora. Mas com o lenço, vem o fígado, que faz...
plaf! no chão. Uma tossida forte e um pé plantado sobre a infame víscera,
manobras do instinto, salvam o lance.
Mas desde este momento a
sala começou a observar um extraordinário fenômeno. Inácio, que tanto se fizera
rogar, não queria agora sair do piano. E mal terminava um recitativo, logo
iniciava outro, sem que ninguém lhe pedisse. É que lhe acorrentava àquele posto
o implacável fígado!
E Inácio recitava. Recitou
sem música: "O navio negreiro", "As duas ilhas",
"Vozes da África", "O Tejo era sereno"
Sinharinha, desconfiada,
abandonou o piano. Inácio, firme. Recitou "O corvo, de Edgar Poe,
"Quisera amar-te", "Acorda donzela", citou poemetos,
modinhas e quadras.
- Num canto da sala
Sinharinha estava, chora-não-chora. Todos se entreolhavam. Teria enlouquecido o
moço?
Inácio firme.
Completamente fora de si, e farto de recitativos de salão, recorreu aos
Lusíadas. E declamou " As armas e os barões", "Estavas linda
Inês", "Do reino às rédeas leve" - tudo!...
E esgotado de Camões, ia
lhe saindo um "Ponto" de filosofia de direito - A única coisa que lhe
restava na memória, quando perdeu o equilíbrio, escorregou e caiu, deixando aos
olhos arregalados da sala a infamérrima víscera exposta!
Adeus casamento, adeus
terra, porque Inácio teve que se mudar dali, pois o malvado capitão Lemos
espalhou por toda a cidade que Inácio era, sem dúvidas, um bom rapaz, mas com
um grave defeito: Quando gostava de um prato, não se contentava em comer e
repetir, ainda levava escondido no bolso o que podia!
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