Visitando o blog de Roberta Sudbrack, me deparei com um texto que me fez admirá-la ainda mais. Sim. Tenho admiração por quem aprende fazer, fazendo. Por quem desmonta pra ver como é que monta. De quem do erro aprende a fazer o certo, com a consciência de que não caberá mais errar.
Esta jovem gaúcha dispensa apresentações para quem permeia pelo mundo da gastronomia brasileira. Talentosa em seu ofício e não menos em suas lúcidas percepções reproduzidas em seus textos, Roberta nos brinda com um texto muito interessante o qual reproduzo aqui na íntegra.
Um valioso conselho para os que estão começando neste ofício e os que imaginam que ser Chef é uma "profissão" de glamour (o que ela inteligentemente contesta). É muita ralação em todos os sentidos. É ganhar o pão (e as vezes amassar muitos), literalmente, com o suor do rosto e porque não dizer de todo o corpo!?
Espero que este texto sirva de reflexão e que tenhamos bom proveito, ao lê-lo. Este é um dos textos que deveríamos ter colado na porta da geladeira, para todos os dias começarmos e recomeçarmos nosso aprendizado, seja em que área do conhecimento for. Pois o que importa, não é somente o que aprendemos na teoria, nos belíssimos livros de culinária, mas o que nossa experiência gravou em nossos corações e mentes.
Errar é mais do que humano, é necessário.
Espero que nenhum dos meus cozinheiros passe por aqui hoje. Porque
apesar de acreditar nessa filosofia de botequim, não posso correr esse
risco com eles! Errar, se pensarmos bem, é o caminho mais próximo da
sabedoria. Só errando na prática, ou seja, vivendo literalmente as
dificuldades, a gente desenvolve um método muito próprio para lidar com
elas no futuro. Se prestarmos bastante atenção aos detalhes que
protagonizaram o erro anterior, muito provavelmente não repetiremos a
cena. Seja por cautela, seja por aprendizado efetivo. Seja o que for,
está valendo.
Errar é fundamental. Aprender sem errar não tem nem a mesma graça e
nem o mesmo peso. Eu, como boa perfeccionista que sou, detesto errar,
para mim é igual perder no jogo de mímica, não admito! Mas com o tempo
fui aprendendo o quanto é importante no processo de amadurecimento do
cozinheiro e do ser humano. Antes, queria morrer. Sentava, chorava,
jogava a panela inteira de arroz todo grudado no lixo. Depois respirava
fundo e começava tudo de novo.
Minha formação é autodidata até a última gota de sangue. Sangue dos
dedos! Todos, um por um, já experimentaram a dor e a delícia de serem
decepados. Cortava tanto os pobres coitados que o pessoal de casa chegou
a pensar que aquela história não iria dar certo simplesmente porque
quando eu tivesse aprendido tudo o que precisava aprender já não teria
mais dedos… Eu ia para a cozinha religiosamente no mesmo horário e com a
compenetração de quem vai mesmo para a faculdade. Colocava uma música
ou ligava uma pequena televisão preto e branco que foi do meu avô. Isso
servia para não perder o contato com o mundo, afinal, passava tantas
horas na cozinha que se não fosse assim não saberia nem quando a moeda
havia sido trocada. Como naquela época trocava bastante, corria o risco
de chegar à feira com cruzeiro, quando as bananas já estavam sendo
vendidas em cruzados. Ali eu passava horas, só na companhia do meu
assistente, o adorável Júnior, meu primeiro Golden Retriever. De vez em
quando eu passava correndo pela sala com a mão enrolada num pano de
prato, que aos poucos ia sofrendo uma mutação na coloração original, do
branco para o vermelho em segundos, coisa fantástica. Todo mundo já
sabia o que havia acontecido e saia correndo atrás de mim com caixinhas e
mais caixinhas de bandaids… Cada um tinha um estoque pessoal sempre à
mão para me acudir nessas horas.
Aprendi errando, essa foi a minha grande escola. Mas também jamais
virava as costas ou desistia de alguma tarefa antes de pelo menos
compreender que havia acontecido. Mesmo que tivesse perdido a ponta de
mais de três dedos no mesmo dia. Poderia até não encontrar a sabedoria
para tomar um cafezinho naquele dia. Mas no dia seguinte lá estava eu,
mais cedo do que de costume na cozinha, esperando por ela. Minha
obstinação é tanta que uma hora a gente acabava tomando tal cafezinho.
Não sei se eu a vencia pelo cansaço ou pela obstinação… Mas seja lá o
que fosse eu sempre aprendia muito.
No dia em que finalmente consegui visualizar o processo de
gelatinização de um molho demi-glace chorei de soluçar em cima dele.
Muito mesmo. Podem imaginar a cena e morrer de rir de mim. Está
liberado! A verdade é que só o demi-glace, o Júnior e eu sabemos o que
significava aquele momento para uma cozinheira que aprendeu tudo
sozinha. Outro dia conversando com um especialista em pesquisa
alimentar, descobri que um dos métodos mais eficazes nesse tipo de
estudo é justamente o da tentativa e erro. Ou seja, nem a ciência escapa
da fabulosa possibilidade de errar. Vira e mexe me perguntam como chego
a resultados tão expressivos e precisos na minha cozinha sem que ela
esteja tão intimamente conectada à ciência. Ora, errando, acertando e
vivendo, meu caro Watson!
Até!
(publicado em 10.07.2011 em http://robertasudbrack.com.br/blog/)
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