No fim de semana passado,
estávamos conversando sobre uma das delícias culinárias de nossa infância e uma
amiga argentina me perguntou quem inventou aquela maravilha que é o doce de
leite.
Vale a pena dizer que o
assunto foi na casa de minha cunhada – argentina também – e é claro que a
resposta seria um tanto quanto tendenciosa fosse qual fosse a resposta. Sim,
pois a resposta a essa pergunta, há tempos não se chega a um consenso, pois
tanto os brasileiros quanto os argentinos reclamam para si a “invenção” do doce
de leite.
Fui pesquisar e encontrei
defesas de ambos os lados. Marina Perez, gastrônoma portenha e proprietária de
uma das mais tradicionais confeitarias e Buenos Aires, declara que “seria como
dizer que o tango não é da Argentina.” Enquanto doceiras de Minas Gerais dizem
que esta receita faz parte da culinária mineira, sendo passada de mães para
filhas a muitas gerações.
Segundo o historiador José Newton Coelho Meneses, professor da
UFMG e especialista em história da alimentação, os doces são estratégias
humanas de preservação de matérias-primas alimentares perecíveis usando
especiarias conservantes. O açúcar é uma delas. E o doce de leite deve ter sido
criado nessa época. A construção
do gosto faz com que a adição de maior ou menor quantidade de açúcar, outras
especiarias e frutos, de mais ou menos tempo na cocção construa as formas
típicas de regiões e de grupos sociais específicos.
Mas então, quem seria o verdadeiro inventor do doce de leite? O
Professor Newton é categórico ao dizer que nem brasileiros e nem argentinos,
pois ambos herdaram e transformaram esse gosto alimentar e o valorizaram em
suas tradições culinárias. Como a culinária é uma linguagem identitária, nos
orgulhamos de nossa tradição e do gosto porque eles dizem quem e como somos. E
como nos diferenciamos dos outros. Assim cada um desses países se orgulha de
sua tradição culinária e quer evidenciá-la como própria de si, na distinção com
as culturas vizinhas. Esses produtos são parte da memória social de nossa
construção histórica. São linguagem de nossa cultura. “Lembram-nos as nossas
formas de viver”, explica.
Apesar dos mineiros dizerem
que são os verdadeiros criadores do doce de leite, os argentinos contam uma
história muito interessante, que nos transporta ao ano de 1829.
No início do século 19, seu país enfrentava uma
sangrenta guerra civil. De um lado estava o general e então futuro ditador Juan
Manuel de Rosas. De outro, o general Juan Lavalle.
Os dois eram inimigos de morte, mas haviam sido
amigos e convivido na infância. Tiveram até a mesma ama-de-leite, a negra
Natália. No interior da Argentina, esse laço equivale a um pacto de sangue.
Rosas e Lavalle eram considerados "irmãos de leite". A certa altura
da guerra, reconhecendo a derrota, Lavalle foi ao encontro de Rosas, na
estância deste, situada em Cañuelas, na Província de Buenos Aires, para
negociar o armistício. Mas, ao apear ali, seu interlocutor ainda não chegara.
Cansado da cavalgada, Lavalle se recostou na cama de Rosas e caiu em sono
profundo. Natália, que preparava uma lechada (leite fervido com açúcar, para
ser colocado na cuia de chimarrão e sorvido em lugar da água habitual), não
gostou daquilo.
Preocupando-se com a possível reação de Rosas,
homem violento e cruel, procurou acordar Lavalle. Como não obteve sucesso,
resolveu ficar por ali, vigiando o sono do "filho de leite". Quando
Rosas chegou, divertiu-se com a cena e deixou que Lavalle continuasse dormindo.
Ao voltar à cozinha, Natália descobriu que a lechada se transformara em uma
preparação aromática e pastosa. O encontro dos generais efetivamente aconteceu
a 17 de julho de 1829. A dúvida é se de fato começou ou terminou em doce de
leite. Uma única coisa é certa: Rosas foi seu fã assumido. Fartava-se com
aquela delícia.
Entretanto, pesquisas recentes desacreditam a tese
de que o doce de leite nasceu acidentalmente, no encontro dos generais. O
jornalista Víctor Ego Ducrot, também de Buenos Aires, no livro Los Sabores de
la Patria - Las Intrigas de la Historia Argentina Contadas desde la Mesa y la
Cocina, vai além. Joga um balde de água fria na versão. "Não obstante, deve-se
afirmar com todas as letras que o doce de leite não é uma invenção
argentina", diz ele. Segundo Ducrot, veio do Chile, famoso no século 18
pela doçaria artesanal. Transpôs a Cordilheira dos Andes e passou a rechear
alfajores. Só depois seguiu carreira-solo. Ducrot acredita que a grande
responsável pela difusão do doce de leite, no século 19, foi a francesa María
Ana Perichón de Vandeuil, mais conhecida como La Perichona, amante do vice-rei
Santiago de Liniers, que governou o Rio da Prata entre 1807 e 1809.
Culta e viajada, bela e mundana, notabilizou-se em
Buenos Aires por reunir três habilidades: sabia conversar, seduzir e cozinhar.
Fazia pessoalmente a comida, ajudada pelas escravas. Converteu Liniers, um
militar espartano, amargurado com as mortes da mulher e da filha, ambas
ocorridas em 1790, aos encantos da cama e da mesa. Os dois se encontravam nos
arredores da capital argentina, onde passavam longas tardes ao ar livre. Para
engalanar a merenda campestre, La Perichona carregava potes de porcelana repletos
de um doce que chamava manjar blanco. Apesar do nome diferente e de alguns o
confundirem com uma preparação homônima, mas diferente, originária do Peru,
Ducrot assegura que já era o verdadeiro doce de leite. Liniers gostava tanto
que mantinha no escritório um pote da especialidade. Comia às colheradas, nos
intervalos das audiências. A prendada La Perichona também sabia elaborar os
cobiçados almendrados, à base de amêndoas; os delicados los amores secos,
biscoitinhos de mel; e os tenros los camotillos, feitos com batata-doce.
Segundo a escritora Mónica Hoss de le Comte, a
localidade de Cañuelas teve, em 1908, o primeiro estabelecimento argentino a
industrializar doce de leite em escala, com a marca La Martona. Até então, era
um produto de elaboração caseira. Hoje, existem no país várias fábricas do gênero,
elaborando anualmente cerca de 120 mil toneladas da especialidade, 3.500 das
quais para exportação. São famosas as marcas Chimbote, Havanna e Poncho Negro.
Mesmo que os argentinos não sejam os inventores do
doce de leite, não lhes podemos negar uma primazia. O deles é o melhor de
todos.
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