Todas
as vezes que venho ao Rio, lembro-me de velhas histórias em que fui testemunha
e até protagonista. Histórias que teceram o gostar de lidar com a arte
culinária. Tanto pelo fato de ser frequentador de restaurantes (hábito
aprendido com meus pais) quanto pela vontade de frequentar as cozinhas que me
fossem permitidas adentrar. Isso se dava por conta das festinhas em que eu ia,
na casa de amigos e amigas (ou mesmo de desconhecidos), e sempre era a cozinha,
um lugar a ser “pesquisado”; afinal, dali saíam quitutes e bebidinhas e se me
dessem chance, era para lá que eu iria – a muvuca
da produção! Se fosse em casa de pessoas mais íntimas, me oferecia para ajudar
de alguma forma, ou à frente do fogão ou preparando drinques. Melhor forma de
aprender não existia naquela época. Era aprender fazendo e vendo os outros
fazerem (novidades ou velhas receitas), o que me rendia a simpatia dos pais dos
amigos e amigas e me acabava me excluindo dos embalos da festa propriamente
dita. Mas vale frisar que isto não era sempre, só quando minha namorada não ia
às tais festinhas; afinal, namorar também era e é preciso.
É
verdade que nesta área das artes culinárias, é preciso muita coragem e até
mesmo ousadia, pois fazer algo em que seja obrigatório ter um nível de
excelência, não é tarefa fácil. Ter de agradar pelo menos 99% da clientela é
tarefa arriscada e que requer preparo.
Por
conta desta ousadia, foi que me atrevi um dia, lá pelos anos 70, a preparar um
prato que nem era muito fácil, mas também não era tão difícil. A escolha de
fazer arroz com mariscos, para quem morava perto da praia, não me pareceu uma
tarefa tão arriscada. Nem para Manolo, portuguesinho amigo, dono de um boteco
na Rua Correa Dutra, no Flamengo, o qual eu frequentava com a rapaziada que ali
morava.
Manolo
era como eu disse um portuguesinho de baixa estatura e largura proporcional ao
seu tamanho. Tinha um bigodinho ralo que contrastava com sua cara bolachuda e
sorriso farto. Um amigo que por força do destino não o vejo há mais de 30 anos.
A primeira pessoa que me confiou sua cozinha para atender seus fregueses.
- Vai lá Cláudio!
Prepara estes mariscos com arroz que eu quero aumentar a freguesia deste
boteco! Disse-me
com aquele sotaque português carregado. E lá fui eu para a cozinha do boteco,
limpar e temperar 10 quilos de mariscos. Como era cedo, teria tempo para ficar
pronto na hora do almoço.
Os
mariscos foram comprados de um pescador conhecido dele e que os trouxe bem
frescos, colhidos pela manhã, bem cedinho. O que era uma garantia tanto da
procedência (nas pedras da praia do Flamengo) quanto da qualidade.
Mariscos
limpos, agora era preciso encontrar uma boa panela que pudesse acolher a
receita em sua totalidade. Afinal, ainda tinha o arroz e seus temperos.
Panela
escolhida; comecei a preparar os ingredientes. Os mariscos eu queria deixá-los
em uma marinada por aproximadamente 1 hora, para pegar um sabor com um toque
diferenciado. Usei uma boa quantidade de vinho branco, daqueles de barril de
madeira que Manolo tinha no bar. Nem me perguntem a marca que eu nem lembro
mais; mas não era de nenhuma cave
francesa, de certo. Cebolas e azeite em bar de português é coisa que não falta.
Cortei um tanto delas; aliás, várias em pedaços pequenos – as lágrimas desciam
dos olhos e talvez tenham servido de tempero, mas isto nem podemos afirmar e
nem dizer. Alhos; amassei e cortei em fatias mais um tanto e juntei às cebolas
picadinhas. Folhas de louro serviram para “florear” aquela mistura. Fui
colocando os mariscos e misturando-os bem com a marinada. Uma colher de sopa de
páprica doce e outra de pimenta-do-reino foram agregadas aos mariscos.
Naquela
época usávamos muito o “Galo” e o “Andorinha”; e foi um destes que abri totalmente
com um abridor de latas (sem dó nem piedade) e despejei-o sobre os mariscos.
Contei
no relógio, uma hora certinha. Manolo, neste ínterim, fazia propaganda da
mariscada que ia ter no bar. Preço camarada, pois a ideia era junta freguês
para consumir a cerveja gelada, naquela manhã de sábado de sol, no verão
carioca.
Uma
camada de azeite cobriu o fundo da panela e o aroma espalhou-se pela rua. Lá do
barbeiro, seu Monteiro, veio saber o que Manolo estava preparando. Ratinho,
mecânico de boa mão, também perguntou e pediu para reservar um prato. D. Ruth,
mãe do Vieira, assim que me viu na cozinha do Manolo, sorriu e foi buscar uma
travessa, pois queria garantir o almoço da família e antes que acabasse me
pediu que separasse uma boa porção. Um místico de orgulho e pânico começou a
tomar conta de mim. Tinha que dar certo. Nem pensar no arroz ficar empapado!
Quando
coloquei o marisco no azeite quente, aí que a coisa cheirou! Fabinho estava
passando e quando percebi, já estava lá na frente do bar com a rapaziada do
morro da Rua Tavares Bastos, esquentando os tamborins, literalmente. Uma roda
de samba iniciou-se naquele momento, para alegria do Manolo, que só ia anotando
e servindo as garrafas de cervejas, caipirinhas, vinho quinado com licor de
ovos, rabo-de-galo, cachacinhas e outras tantas biritas.
Uma
rápida refogada no marisco, o arroz entrou soberano sobre ele. Adicionei a
mistura um maço de cebolinhas e coentro picados. Uma boa mexida para homogeneizar.
Completando com água dois dedos acima do arroz, tampei a panela e deixei que a ciência
do preparo se encarregasse do resto. O sal finalizaria o tempero e mais uma
mexida para ficar tudo bem temperado. Era só esperar cozinhar em fogo bem
baixo, apurando lentamente.
A
bateria lá fora chamava curiosos e simpatizantes; o bar já estava lotado e as
pessoas eram atendidas na calçada, sendo que alguns sentavam nos para-choques
dos carros e acompanhavam sambas enredos daquela época. Era uma festa.
A
todo instante eu verificava se o arroz estava cozinhando e empapando. Até
então, jamais tinha feito algo para tanta gente. Um pacote de 5 kg de arroz e
uma panela que ocupou todo o fogãozinho de quatro bocas do boteco do Manolo. As
quatro bocas em fogo baixo, eram as responsáveis pela distribuição da fervura
da panela. “E se desse errado”? Me perguntava. Mas o otimismo prevalecia – “E
se desse certo”? Seria um sucesso!
Quarenta
e cinco minutos depois, o que se viu foi uma “briga” para ser atendido. Ainda
bem que eu já havia feito as reservas de Ratinho e D. Ruth. O pratinho de
papelão era vendido a um preço simbólico; pois o que tinha de gente bebendo por
conta do samba ali instalado e a promessa de uma mariscada, garantiu o caixa do
Manolo.
A
festa rendeu praticamente a tarde toda, o que não aconteceu com a mariscada que
acabou em menos de meia hora. Manolo era todo sorriso, com sua cara bolachuda.
Eu também, não podia esconder a satisfação e o alívio de ter conseguido fazer
aquele prato – aliás, uma panela. Panela esta, que me incentivou a continuar me
aventurando em outras empreitadas culinárias.
Outros desafios vieram na
sequência. Outra hora eu conto.