Tuesday, December 3, 2013

A História do Doce de Leite


No fim de semana passado, estávamos conversando sobre uma das delícias culinárias de nossa infância e uma amiga argentina me perguntou quem inventou aquela maravilha que é o doce de leite.
Vale a pena dizer que o assunto foi na casa de minha cunhada – argentina também – e é claro que a resposta seria um tanto quanto tendenciosa fosse qual fosse a resposta. Sim, pois a resposta a essa pergunta, há tempos não se chega a um consenso, pois tanto os brasileiros quanto os argentinos reclamam para si a “invenção” do doce de leite.
Fui pesquisar e encontrei defesas de ambos os lados. Marina Perez, gastrônoma portenha e proprietária de uma das mais tradicionais confeitarias e Buenos Aires, declara que “seria como dizer que o tango não é da Argentina.” Enquanto doceiras de Minas Gerais dizem que esta receita faz parte da culinária mineira, sendo passada de mães para filhas a muitas gerações.
Segundo o historiador José Newton Coelho Meneses, professor da UFMG e especialista em história da alimentação, os doces são estratégias humanas de preservação de matérias-primas alimentares perecíveis usando especiarias conservantes. O açúcar é uma delas. E o doce de leite deve ter sido criado nessa época. A construção do gosto faz com que a adição de maior ou menor quantidade de açúcar, outras especiarias e frutos, de mais ou menos tempo na cocção construa as formas típicas de regiões e de grupos sociais específicos.
Mas então, quem seria o verdadeiro inventor do doce de leite? O Professor Newton é categórico ao dizer que nem brasileiros e nem argentinos, pois ambos herdaram e transformaram esse gosto alimentar e o valorizaram em suas tradições culinárias. Como a culinária é uma linguagem identitária, nos orgulhamos de nossa tradição e do gosto porque eles dizem quem e como somos. E como nos diferenciamos dos outros. Assim cada um desses países se orgulha de sua tradição culinária e quer evidenciá-la como própria de si, na distinção com as culturas vizinhas. Esses produtos são parte da memória social de nossa construção histórica. São linguagem de nossa cultura. “Lembram-nos as nossas formas de viver”, explica.
        Apesar dos mineiros dizerem que são os verdadeiros criadores do doce de leite, os argentinos contam uma história muito interessante, que nos transporta ao ano de 1829.


No início do século 19, seu país enfrentava uma sangrenta guerra civil. De um lado estava o general e então futuro ditador Juan Manuel de Rosas. De outro, o general Juan Lavalle.
Os dois eram inimigos de morte, mas haviam sido amigos e convivido na infância. Tiveram até a mesma ama-de-leite, a negra Natália. No interior da Argentina, esse laço equivale a um pacto de sangue. Rosas e Lavalle eram considerados "irmãos de leite". A certa altura da guerra, reconhecendo a derrota, Lavalle foi ao encontro de Rosas, na estância deste, situada em Cañuelas, na Província de Buenos Aires, para negociar o armistício. Mas, ao apear ali, seu interlocutor ainda não chegara. Cansado da cavalgada, Lavalle se recostou na cama de Rosas e caiu em sono profundo. Natália, que preparava uma lechada (leite fervido com açúcar, para ser colocado na cuia de chimarrão e sorvido em lugar da água habitual), não gostou daquilo.
Preocupando-se com a possível reação de Rosas, homem violento e cruel, procurou acordar Lavalle. Como não obteve sucesso, resolveu ficar por ali, vigiando o sono do "filho de leite". Quando Rosas chegou, divertiu-se com a cena e deixou que Lavalle continuasse dormindo. Ao voltar à cozinha, Natália descobriu que a lechada se transformara em uma preparação aromática e pastosa. O encontro dos generais efetivamente aconteceu a 17 de julho de 1829. A dúvida é se de fato começou ou terminou em doce de leite. Uma única coisa é certa: Rosas foi seu fã assumido. Fartava-se com aquela delícia.


Entretanto, pesquisas recentes desacreditam a tese de que o doce de leite nasceu acidentalmente, no encontro dos generais. O jornalista Víctor Ego Ducrot, também de Buenos Aires, no livro Los Sabores de la Patria - Las Intrigas de la Historia Argentina Contadas desde la Mesa y la Cocina, vai além. Joga um balde de água fria na versão. "Não obstante, deve-se afirmar com todas as letras que o doce de leite não é uma invenção argentina", diz ele. Segundo Ducrot, veio do Chile, famoso no século 18 pela doçaria artesanal. Transpôs a Cordilheira dos Andes e passou a rechear alfajores. Só depois seguiu carreira-solo. Ducrot acredita que a grande responsável pela difusão do doce de leite, no século 19, foi a francesa María Ana Perichón de Vandeuil, mais conhecida como La Perichona, amante do vice-rei Santiago de Liniers, que governou o Rio da Prata entre 1807 e 1809.
Culta e viajada, bela e mundana, notabilizou-se em Buenos Aires por reunir três habilidades: sabia conversar, seduzir e cozinhar. Fazia pessoalmente a comida, ajudada pelas escravas. Converteu Liniers, um militar espartano, amargurado com as mortes da mulher e da filha, ambas ocorridas em 1790, aos encantos da cama e da mesa. Os dois se encontravam nos arredores da capital argentina, onde passavam longas tardes ao ar livre. Para engalanar a merenda campestre, La Perichona carregava potes de porcelana repletos de um doce que chamava manjar blanco. Apesar do nome diferente e de alguns o confundirem com uma preparação homônima, mas diferente, originária do Peru, Ducrot assegura que já era o verdadeiro doce de leite. Liniers gostava tanto que mantinha no escritório um pote da especialidade. Comia às colheradas, nos intervalos das audiências. A prendada La Perichona também sabia elaborar os cobiçados almendrados, à base de amêndoas; os delicados los amores secos, biscoitinhos de mel; e os tenros los camotillos, feitos com batata-doce.


Segundo a escritora Mónica Hoss de le Comte, a localidade de Cañuelas teve, em 1908, o primeiro estabelecimento argentino a industrializar doce de leite em escala, com a marca La Martona. Até então, era um produto de elaboração caseira. Hoje, existem no país várias fábricas do gênero, elaborando anualmente cerca de 120 mil toneladas da especialidade, 3.500 das quais para exportação. São famosas as marcas Chimbote, Havanna e Poncho Negro.
Mesmo que os argentinos não sejam os inventores do doce de leite, não lhes podemos negar uma primazia. O deles é o melhor de todos.