Wednesday, June 25, 2014

Histórias de minha vida - Mariscada na Correa Dutra


Todas as vezes que venho ao Rio, lembro-me de velhas histórias em que fui testemunha e até protagonista. Histórias que teceram o gostar de lidar com a arte culinária. Tanto pelo fato de ser frequentador de restaurantes (hábito aprendido com meus pais) quanto pela vontade de frequentar as cozinhas que me fossem permitidas adentrar. Isso se dava por conta das festinhas em que eu ia, na casa de amigos e amigas (ou mesmo de desconhecidos), e sempre era a cozinha, um lugar a ser “pesquisado”; afinal, dali saíam quitutes e bebidinhas e se me dessem chance, era para lá que eu iria – a muvuca da produção! Se fosse em casa de pessoas mais íntimas, me oferecia para ajudar de alguma forma, ou à frente do fogão ou preparando drinques. Melhor forma de aprender não existia naquela época. Era aprender fazendo e vendo os outros fazerem (novidades ou velhas receitas), o que me rendia a simpatia dos pais dos amigos e amigas e me acabava me excluindo dos embalos da festa propriamente dita. Mas vale frisar que isto não era sempre, só quando minha namorada não ia às tais festinhas; afinal, namorar também era e é preciso.
É verdade que nesta área das artes culinárias, é preciso muita coragem e até mesmo ousadia, pois fazer algo em que seja obrigatório ter um nível de excelência, não é tarefa fácil. Ter de agradar pelo menos 99% da clientela é tarefa arriscada e que requer preparo.
Por conta desta ousadia, foi que me atrevi um dia, lá pelos anos 70, a preparar um prato que nem era muito fácil, mas também não era tão difícil. A escolha de fazer arroz com mariscos, para quem morava perto da praia, não me pareceu uma tarefa tão arriscada. Nem para Manolo, portuguesinho amigo, dono de um boteco na Rua Correa Dutra, no Flamengo, o qual eu frequentava com a rapaziada que ali morava.
Manolo era como eu disse um portuguesinho de baixa estatura e largura proporcional ao seu tamanho. Tinha um bigodinho ralo que contrastava com sua cara bolachuda e sorriso farto. Um amigo que por força do destino não o vejo há mais de 30 anos. A primeira pessoa que me confiou sua cozinha para atender seus fregueses.
- Vai lá Cláudio! Prepara estes mariscos com arroz que eu quero aumentar a freguesia deste boteco! Disse-me com aquele sotaque português carregado. E lá fui eu para a cozinha do boteco, limpar e temperar 10 quilos de mariscos. Como era cedo, teria tempo para ficar pronto na hora do almoço.
Os mariscos foram comprados de um pescador conhecido dele e que os trouxe bem frescos, colhidos pela manhã, bem cedinho. O que era uma garantia tanto da procedência (nas pedras da praia do Flamengo) quanto da qualidade.
Mariscos limpos, agora era preciso encontrar uma boa panela que pudesse acolher a receita em sua totalidade. Afinal, ainda tinha o arroz e seus temperos.
Panela escolhida; comecei a preparar os ingredientes. Os mariscos eu queria deixá-los em uma marinada por aproximadamente 1 hora, para pegar um sabor com um toque diferenciado. Usei uma boa quantidade de vinho branco, daqueles de barril de madeira que Manolo tinha no bar. Nem me perguntem a marca que eu nem lembro mais; mas não era de nenhuma cave francesa, de certo. Cebolas e azeite em bar de português é coisa que não falta. Cortei um tanto delas; aliás, várias em pedaços pequenos – as lágrimas desciam dos olhos e talvez tenham servido de tempero, mas isto nem podemos afirmar e nem dizer. Alhos; amassei e cortei em fatias mais um tanto e juntei às cebolas picadinhas. Folhas de louro serviram para “florear” aquela mistura. Fui colocando os mariscos e misturando-os bem com a marinada. Uma colher de sopa de páprica doce e outra de pimenta-do-reino foram agregadas aos mariscos.
Naquela época usávamos muito o “Galo” e o “Andorinha”; e foi um destes que abri totalmente com um abridor de latas (sem dó nem piedade) e despejei-o sobre os mariscos.
Contei no relógio, uma hora certinha. Manolo, neste ínterim, fazia propaganda da mariscada que ia ter no bar. Preço camarada, pois a ideia era junta freguês para consumir a cerveja gelada, naquela manhã de sábado de sol, no verão carioca.
Uma camada de azeite cobriu o fundo da panela e o aroma espalhou-se pela rua. Lá do barbeiro, seu Monteiro, veio saber o que Manolo estava preparando. Ratinho, mecânico de boa mão, também perguntou e pediu para reservar um prato. D. Ruth, mãe do Vieira, assim que me viu na cozinha do Manolo, sorriu e foi buscar uma travessa, pois queria garantir o almoço da família e antes que acabasse me pediu que separasse uma boa porção. Um místico de orgulho e pânico começou a tomar conta de mim. Tinha que dar certo. Nem pensar no arroz ficar empapado!
Quando coloquei o marisco no azeite quente, aí que a coisa cheirou! Fabinho estava passando e quando percebi, já estava lá na frente do bar com a rapaziada do morro da Rua Tavares Bastos, esquentando os tamborins, literalmente. Uma roda de samba iniciou-se naquele momento, para alegria do Manolo, que só ia anotando e servindo as garrafas de cervejas, caipirinhas, vinho quinado com licor de ovos, rabo-de-galo, cachacinhas e outras tantas biritas.
Uma rápida refogada no marisco, o arroz entrou soberano sobre ele. Adicionei a mistura um maço de cebolinhas e coentro picados. Uma boa mexida para homogeneizar. Completando com água dois dedos acima do arroz, tampei a panela e deixei que a ciência do preparo se encarregasse do resto. O sal finalizaria o tempero e mais uma mexida para ficar tudo bem temperado. Era só esperar cozinhar em fogo bem baixo, apurando lentamente.
A bateria lá fora chamava curiosos e simpatizantes; o bar já estava lotado e as pessoas eram atendidas na calçada, sendo que alguns sentavam nos para-choques dos carros e acompanhavam sambas enredos daquela época. Era uma festa.
A todo instante eu verificava se o arroz estava cozinhando e empapando. Até então, jamais tinha feito algo para tanta gente. Um pacote de 5 kg de arroz e uma panela que ocupou todo o fogãozinho de quatro bocas do boteco do Manolo. As quatro bocas em fogo baixo, eram as responsáveis pela distribuição da fervura da panela. “E se desse errado”? Me perguntava. Mas o otimismo prevalecia – “E se desse certo”? Seria um sucesso!
Quarenta e cinco minutos depois, o que se viu foi uma “briga” para ser atendido. Ainda bem que eu já havia feito as reservas de Ratinho e D. Ruth. O pratinho de papelão era vendido a um preço simbólico; pois o que tinha de gente bebendo por conta do samba ali instalado e a promessa de uma mariscada, garantiu o caixa do Manolo.
A festa rendeu praticamente a tarde toda, o que não aconteceu com a mariscada que acabou em menos de meia hora. Manolo era todo sorriso, com sua cara bolachuda. Eu também, não podia esconder a satisfação e o alívio de ter conseguido fazer aquele prato – aliás, uma panela. Panela esta, que me incentivou a continuar me aventurando em outras empreitadas culinárias.
        Outros desafios vieram na sequência. Outra hora eu conto.

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