Wednesday, October 24, 2012

A gastronomia e a literatura - Câmara Cascudo


Meu pai deixou-me uma herança bibliográfica muito rica. Sua biblioteca era “habitada” por autores dos mais diversos estilos e das mais diversas nacionalidades. Um oceano no qual mergulhei durante minha juventude e pude conhecer como é rica a imaginação do homem e sua percepção do mundo.
Vários autores tornaram-se meus preferidos. Os brasileiros me agradavam mais, apesar de também gostar de alguns estrangeiros bons de prosa e de versos. Dentre os brasileiros, teve um que é uma referência para quem quiser conhecer o universo folclórico brasileiro. Luís da Câmara Cascudo, nascido na cidade de Natal, no Rio Grande do Norte (terra de minha avó materna), em 30 de dezembro de 1898. Historiador, antropólogo, advogado e jornalista; passou toda a sua vida na cidade de Natal, dedicando-se ao estudo da cultura brasileira. Foi professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Escolhi um dos contos garimpados por Câmara Cascudo, para que vocês possam conhecer um pouco de seu trabalho. Obviamente, que o assunto está relacionado ao universo culinário, mas com um conteúdo divertido e bem representativo. É um conto conhecido também em Portugal que faz parte do livro Contos Tradicionais do Povo Português; também conhecido na Espanha, em Cuentos Populares Españoles.
Divirtam-se!

A gulosa disfarçada

Um homem casara com excelente mulher, dona de casa arranjadeira mas muito gulosa. Para disfarçar seu apetite fingia-se sem vontade de alimentar-se sempre que o marido a convidava nas refeições. Apesar desse regime, engordava cada vez mais e o esposo admirava alguém poder viver com tão pouca comida. Uma manhã resolveu certificar-se se a mulher comia em sua ausência. Disse que ia para o trabalho e escondeu-se num lugar onde podia acompanhar os passos da esposa.
No almoço, viu-a fazer umas tapiocas de goma, bem grossas, molhadas no leite de coco, e comê-las todas, deliciada. Na merenda, mastigou um sem-número de alfenins finos, branquinhos e gostosos. Na hora do jantar matou um capão, ensopou-o em molho espesso, saboreando-o.  À ceia, devorou um prato de macaxeiras, enxutinhas, acompanhando-as com manteiga.
Ao anoitecer, o marido apareceu, fingindo-se fatigado. Chovera o dia inteiro e o homem estava como se estivesse passado, como realmente passara, o dia à sombra. A mulher perguntou:
- Homem, como é que trabalhando na chuva você não se molhou?
O marido respondeu:
- Se a chuva fosse grossa como as tapiocas que você almoçou, eu teria vindo ensopado como capão que você jantou. Mas a chuva era fina como os alfenins que você merendou e eu fiquei enxuto como as macaxeiras que você ceou.
A mulher compreendeu que fora descoberta em seu disfarce e não mais escondeu o seu apetite ao marido.

Leopoldino Viana de Melo
Macaíba, Rio Grande do Norte


2 comments:

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    1. Que bom que gostou, Ceci. Aproveito a oportunidade para agradecer sua visita a meu blog. Bom apetite!

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