Sunday, August 26, 2012

A Gastronomia na Literatura - Cora Coralina



   O texto a seguir, é da poetisa e doceira goiana Cora Coralina. Um conto para crianças, que ouvi hoje, de uma contadora de história para crianças, que ao lê-lo, fez com que minha boca enchesse d'água. Eu tive a nítida visão das cocadas e pude até sentir o aroma...Impressionante como a literatura também consegue tocar nossos sentido gustativo. Confiram!

As cocadas
Cora Coralina

    Eu devia ter nesse tempo dez anos. Era menina prestimosa e trabalhadeira à moda do tempo. Tinha ajudado a fazer aquela cocada. Tinha areado o tacho de cobre e ralado o coco. 

   Acompanhei rente à fornalha todo o serviço, desde a escumação da calda até a apuração do ponto. 

    Vi quando foi batida e estendida na tábua, vi quando cortada em losangos. Saiu uma cocada morena, de ponto brando atravessada de paus de canela cheirosa.

    O coco era gordo, carnudo e leitoso, o doce ficou excelente. Minha prima me deu duas cocadas e guardou tudo mais numa terrina grande, funda e de tampa pesada. Botou no alto da prateleira.

   Duas cocadas só... Eu esperava quatro e comeria de uma assentada oito, dez, mesmo. Dias seguidos namorei aquela terrina, inacessível. De noite, sonhava com as cocadas. De dia as cocadas dançavam pequenas piruetas na minha frente. 

  Sempre eu estava por ali perto, ajudando nas quitandas, esperando, aguando e de olho na terrina. Batia os ovos, segurava gamela, untava as formas, arrumava nas assadeiras, entregava na boca do forno e socava cascas no pesado almofariz de bronze.

    Estávamos nessa lida e minha prima precisou de uma vasilha para bater um pão-de-ló. Tudo ocupado. Entrou na copa e desceu a terrina, botou em cima da mesa, deslembrada do seu conteúdo. Levantou a tampa e só fez: Hiiii... Apanhou um papel pardo sujo, estendeu no chão, no canto da varanda e despejou de uma vez a terrina.

     As cocadas moreninhas, de ponto brando, atravessadas aqui e ali de paus de canela e feitas de coco leitoso e carnudo guardadas ainda mornas e esquecidas, tinham se recoberto de uma penugem cinzenta, macia e aveludada de bolor.

   Aí minha prima chamou o cachorro: Trovador... Trovador ... e veio o Trovador, um perdigueiro de meu tio, lerdo, preguiçoso, nutrido e abanando a cauda. Farejou os doces em interesse e passou a lamber, assim de lado, com o maior pouco caso.

   Eu olhando com uma vontade louca de avançar nas cocadas. Até hoje, quando me lembro disso, sinto dentro de mim uma revolta - má e dolorida - de não ter enfrentado decidida, resoluta, malcriada e cínica, aqueles adultos negligentes e partilhado das cocadas bolorentas com o cachorro.

No comments:

Post a Comment