Cozinhando com Amigos, traz uma outra história sobre a origem da feijoada, o que desfaz um mito de que teria sido criada pelos escravos. Uma linha de pesquisa nos mostra com detalhes, como pode ter surgido este prato, que independente de sua origem, encanta a todos, daqui e de todos os lugares do planeta, que nos visitam.
    Por desinformação histórica e sem fundamento na tradição       culinária brasileira, muitos acreditam que a feijoada       nasceu na senzala, entre o período da Colônia e do Império.       Seria um prato criado pelos escravos com os “restos” do porco,       ou seja, as partes “desprezadas” pelos senhores dos engenhos de       açúcar, fazendas de café e minas de ouro: orelha, focinho,       pé, rabo e língua. Verbetes de dicionários e livros de       cozinha nacionais difundem essa crença. Nada mais errado. Quando os       portugueses colonizaram o Brasil, trouxeram receitas que formaram a base da       cozinha nacional. Algumas tinham como matérias-primas justamente orelha,       focinho, rabo e língua do porco. Ao contrário da lenda, essas       partes nunca foram consideradas “restos”. Eram apreciadas pelos       nossos ancestrais, que as julgavam verdadeiras iguarias. Alguns pratos da       cozinha regional portuguesa continuam a usar os mesmos ingredientes.
    Além disso, a barbárie a que os negros foram submetidos durante       a escravidão se estendeu à cozinha. No dia-a-dia, os escravos       comiam basicamente farinha de milho ou mandioca, feita com água. Os       alimentos se resumiam ao mínimo necessário para eles não       enfraquecerem e continuarem aptos ao trabalho. Os senhores deixavam que os       escravos entrassem no pomar, mas não faziam isso por bondade. Precisavam       comer laranja para evitar o escorbuto, doença hemorrágica causada       pela carência de vitamina C. Quando havia feijão, era sempre       magro e pobre. Este, sim, poderia ser considerado “resto” da casa-grande.       Ao falar da alimentação dada aos escravos nas fazendas, no livro       Feijão, Angu e Couve: Ensaio Sobre a Comida dos Mineiros, de 1982,       Eduardo Frieiro observa que o feijão era quase sempre bichado. De modo       geral, somente em ocasiões especiais, como no encerramento da colheita,       os escravos recebiam pedaços de charque ou carne fresca. Se alguma       receita surgiu na senzala, essa foi o angu, invariavelmente sem sal, ingrediente       “caro demais” para ser dado aos negros.
    Foi provavelmente Guilherme Figueiredo, no livro Comidas Meu Santo, publicado       em 1964, o primeiro a escrever claramente que a feijoada       não nasceu na senzala. Segundo ele, a receita seria uma “degeneração”       do cassoulet francês – preparado com feijão branco, carnes       de vaca, carneiro, ganso, pato ou galinha, lingüiça, cebola, tomate,       alho e temperos – e também do cozido luso, que ele chama equivocadamente       de “caldeirada”. Luís da Câmara Cascudo, em sua preciosa       História da Alimentação no Brasil, lançada em       1983, reiterou a tese européia. Descreveu exaustivamente a comida dos       escravos, sem mencionar a feijoada. Para ele, a receita surgiu em algum canto       do País quando se incorporou, pela primeira vez, o feijão às       carnes e verduras do cozido português.
    Lenda – Outros dois autores brasileiros reforçaram a tese. O       primeiro foi Carlos Augusto Ditadi, técnico em assuntos culturais do       Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, em artigo publicado na revista Gula, de       maio de 1998. “- Essa alegada origem da feijoada não       passa de lenda contemporânea, nascida do folclore moderno, numa visão       romanceada das relações sociais e culturais da escravidão       no Brasil”, afirmou. Mais recentemente, no livro A Saga da Comida, editado       em 2000, o sociólogo Gabriel Bolaffi, da Universidade de São       Paulo, ironizou o mito de que os escravos eram alimentados com um prato rico       e vigoroso. “Em fazendas que podiam variar de algumas dezenas até       umas tantas centenas de escravos, imagine quanto lombo e quantos pernis a       casagrande teria de consumir para que duas orelhas, quatro patas, um focinho       e um rabo alimentassem tanto escravo”, disse.
    Pelo mundo afora existem pratos assemelhados à feijoada – e       jamais relacionados com a escravatura. A Espanha tem o cozido madrileno. A       Itália, a “casoeula” milanesa. Ambos são preparados       com grão-de-bico. Aparentemente, tiveram a mesma evolução       da feijoada, que foi incrementada com o passar do tempo,       até se transformar na obra-prima da atualidade. Câmara Cascudo       observou que sua fórmula continua em desenvolvimento. Tal como a conhecemos,       acompanhada de arroz branco, laranja em fatias, couve refogada e farofa, a       feijoada parece ter sido oferecida publicamente, pela primeira vez, no restaurante       carioca G. Lobo, que funcionava na rua General Câmara, 135, no Rio de       Janeiro. O estabelecimento, fundado no final do século 19, desapareceu       com a construção da avenida Presidente Vargas, na década       de 40.
    No livro Chão de Ferro, de 1976, Pedro Nava acredita que a receita atual nasceu       ali. Embora não se possa ter certeza disso, a contribuição       do Rio de Janeiro é inegável. Sobretudo, revela-se na presença       do feijão-preto, uma predileção carioca. Em Salvador,       por exemplo, se usaria o feijão-mulatinho. Fanático por feijoada,       o carioca a aprecia até nos dias escaldantes do verão. A receita       contemporânea teria migrado da cozinha do G. Lobo para outros restaurantes       da cidade, bem como para São Paulo, Minas Gerais e Bahia. Bares e botequins       das grandes cidades do Centro-Leste também a adotaram com sucesso.       Atualmente, espalhasse por todo o território nacional, como a receita       mais representativa da cozinha brasileira. Revista, ampliada e enriquecida,       a feijoada deixou de ser exclusivamente um prato. Hoje, como também       notou Câmara Cascudo, é uma refeição completa.      

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